Golpe de Sorte em Paris: Deixem esse homem morrer
Destrinchando a J.K. Rowling do Reserva Cultural
Em 2013, eu fui jantar com minhas amigas da escola num restaurante, e o Luan Santana estava sentado na mesa do lado da nossa. Depois que ele terminou de comer e foi embora, umas meninas de 20 e poucos anos foram correndo pegar os guardanapos que ele tinha usado; eu lembro de ver uma delas apertando um guardanapo sujo contra o peito como quem segura um CD autografado. A saliva do Luan Santana e os rastros de molho barbecue que tinham passado pelos lábios do Luan Santana consagravam aqueles guardanapos, que de outra forma seriam só retângulos de papel. Anos depois eu fui ficar sabendo da anedota do Salvador Dalí vendendo folhas em branco assinadas, e lembrei daquele momento. Walter Benjamin dizia que, num mundo mecanizado em que obras de arte não têm mais a mística de serem únicas no espaço-tempo, o culto à personalidade é o mais próximo que a arte ainda tem de uma “aura”. Às vezes não é a coisa; é a pessoa.
Tudo isso pra dizer: faz pelo menos uns 10 anos que Woody Allen vende guardanapos usados em forma de filmes. No ano em que eu testemunhei as pigzonas do Outback, ele estava lançando Blue Jasmine, que viria a ser o seu último filme com alguma notoriedade, em grande parte por mérito da Cate Blanchett. Desde então, todo filme do Woody Allen é mais ou menos a mesma coisa: um Filme Do Woody Allen, com tudo que isso implica, quem quiser que compre. Ele já era famoso por não reescrever roteiros, filmar poucos takes, produzir rápido, mas de 2014 pra frente esse método pá-pum virou o assunto central de toda resenha de todo filme dele. “Woody Allen nem se esforça mais”, lamentam toda vez, como se fosse uma grande decepção. Mas vamo ser sincero, né, galera. A essa altura do campeonato, estranho seria se ele se esforçasse. Pra que ele faria isso? Ele não precisa. Ele é o Woody Allen.
Chega a ser engraçado, pra não dizer cínico, ver gente insistindo que é preciso “separar a obra do artista” quando o assunto é um filme como Golpe de Sorte em Paris. Assim como em todo filme do Allen na última década, não tem obra nenhuma pra se apreciar em Golpe de Sorte em Paris; só o que tem é o artista. Tomemos a trama: uma marchand jovem e inteligente é casada com um gestor financeiro rico, que trata ela como esposa-troféu e não conta os detalhes dos seus negócios escusos. Um dia, ela se reconecta com um ex-colega de escola, um escritor gostoso e cacheado e de espírito livre, e os dois começam um caso extraconjugal. O marido rico fica com ciúme, muito ciúme, arde de ciúme. Se eu te disser que tem uma guinada narrativa na metade do filme, você consegue imaginar qual é? Eu te prometo: consegue sim.
A “novidade”, aqui, seria que os dois pombinhos se cruzam por acaso na rua, e que o destino deles é um exemplo do quanto a sorte e a aleatoriedade governam a vida humana. Em tese, Golpe de Sorte em Paris tem um “tema”. Mas o tema em filmes tardios do Woody Allen é como o dresscode em uma festa de faculdade particular: é só pra dizer que tem, não é seguido com muito afinco, e provavelmente já foi usado em 2015. Golpe de Sorte em Paris não tem nada de profundo a dizer sobre acaso e destino, e o pouco que tem a dizer é reciclado de O Homem Irracional, que por sua vez reciclava incontáveis outros filmes de “morbidez cotidiana” do Allen. Uma comparação intuitiva seria com os filmes do Hong Sang-soo, que também reiteram os mesmos temas e narrativas-base, mas seria uma comparação infundada por uma diferença fundamental: o Hong Sang-soo dirige.
Golpe de Sorte em Paris não é exatamente dirigido, e sim deixado em ponto morto. A câmera tão somente exibe os falantes de cada cena à meia-distância, normalmente em planos-sequência teatrais, só rolando junto com as informações dramatúrgicas sem ocultar nem enfatizar nada. A coreografia é indiferente — atores centralizados e distribuídos igualmente nos quartos da tela — ou óbvia — fofoca entre dois homens poderosos enquanto o assunto da fofoca aparece pequenininho no fundo; personagem sozinha nos degraus de uma escada pra mostrar que ela é isolada socialmente; esposa de costas pro marido porque está de saco cheio dele. Em um certo momento, eu levei um susto com um plano que parava na Lou de Laâge deitada na cama enquanto os outros atores iam andando pra fora do quadro, porque era a primeira vez no filme inteiro que o Woody Allen fazia uma escolha como diretor. Mais tarde, numa cena que precisava mostrar uma personagem sendo impactada silenciosamente por uma conversa em grupo, eu pensei: “Lá vem o primeiro close do filme”. Dois segundos depois, close na cara da atriz.
Não tem prazer, nem curiosidade, nem paixão nessas escolhas. Elas não despertam nada em mim, como espectador, além de um entendimento básico do andamento da narrativa, que em si é uma narrativa completamente protocolar. Tem algum prazer no retrato de Paris, mas é um prazer de Pinterest, derivado inteiramente das cores fortes e vivas da fotografia do Vittorio Storaro; o filme explora a cidade com menos vigor do que um episódio médio de Emily in Paris. Teria um prazer espumoso estilo Nancy Meyers na fantasia de riqueza, no luxo e na beleza inalcançável que os Fourniers habitam, mas não tem, porque o diretor não entende que é uma fantasia — pra ele, as festas e as mansões e os restaurantes e os apartamentos lindos são só o mundo normal, o pano de fundo padrão pra uma história, sem nada de sensual pra aproveitar.
O único “prazer” de Golpe de Sorte em Paris, a única reivindicação que o filme faz ao interesse do público, é a presença implícita do Woody Allen atrás da câmera. Hoje em dia se fala muito do “cinéfilo de imagem”, do “cinéfilo de ecobag da Mubi”, mas cinefilia de imagem é isso aqui: esse é um filme pra jovens diletantes e idosos de classe média alta — os mesmos que vão ver comédias pastelão francesas no Reserva Cultural e se acham muito mais requintados do que quem vê, digamos, Os Farofeiros — assistirem e pensarem “Ah lá, os diálogos do Woody Allen. Ah lá a fonte Windsor Light Condensed do Woody Allen. Ah lá a trilha de jazz do Woody Allen. Ah, esse Woody Allen e seus deliciosos filmes. Que final inteligente! Jantar na Osteria?”.
O final de Golpe de Sorte em Paris, que fique claro, não é inteligente. É um final engraçadinho, e só. Mas não precisa ser inteligente pra agradar o público-alvo. Nada no filme precisa ter qualidade nenhuma; basta que a assinatura do diretor-roteirista mistifique o objeto. Até os Diálogos Do Woody Allen, aqui, são anêmicos, sem qualquer especificidade ou personalidade ou poder de observação, sem qualquer faísca de humanidade ou poesia entre a Fanny e o Alain que dê algum corpo à paixão tórrida dos dois. (O magnetismo do Alain é baseado — adivinha — em ser escritor e conhecer vários romancistas e poetas e ter muito tesão na Fanny. Pelo menos antigamente o Allen se esforçava pros self-inserts dele serem bons de papo.)
E no entanto Golpe de Sorte em Paris está sendo recebido como o melhor filme do Woody Allen em anos, e talvez seja mesmo, simplesmente porque todo mundo se acostumou a não esperar nada dele. É meio como aquela passagem de Diário de um Banana em que o Greg fala sobre como o irmão dele aprendeu a impressionar os pais fazendo o mínimo: A gente espera inexistência de pessoas não-brancas do Woody Allen, então ele consegue surpreender positivamente incluindo uma Black Best Friend; a gente espera heteronormatividade, então se anima com uma detetive taciturna de cabelo curtinho sapatão-coded que aparece por três cenas; a gente sabe que ele é chauvinista, então o protagonismo de uma mulher de meia-idade na segunda metade do filme é um bálsamo. Woody Allen é o nosso avô ranzinza que deixa todo mundo feliz só de assistir a Pabllo Vittar no Domingão com Huck sem dizer nada homofóbico.
A pergunta que eu faço é: Não dá pra gente pedir mais do cinema do que os gestos discretos de decência de um avô ranzinza? Mais do que isso — existe realmente a necessidade de continuar dando trela pro avô ranzinza sendo que na melhor das hipóteses ele “só” começou um relacionamento com a enteada de 20 anos enquanto tinha 55, e na pior pode ser culpado da acusação de ter molestado a própria filha adotiva quando ela tinha 7 anos, e em qualquer hipótese não se arrepende nem acha que fez nada de errado?
“Ah, pronto”, dirão alguns lendo esse texto, “lá vem ele meter a vida pessoal do Woody Allen na crítica”. Quem fiz isso não fui eu: quem faz isso é o próprio Woody Allen, e é o próprio público do Woody Allen, ao reiteradamente produzir e consumir filmes cuja existência e apelo se baseiam inteiramente no culto à personalidade do diretor. Eu não tenho a ilusão de que é possível fazer política através do consumo de arte, nem cobro isso de ninguém; não acho que seja “imoral” pagar pra ver Golpe de Sorte em Paris, embora eu pessoalmente tenha preferido ver sem pagar. Minha escolha de boicote artístico é uma escolha pessoal baseada no desconforto que eu mesmo sinto com certas obras, e normalmente se aplica mais à música, onde a identificação íntima com a personalidade do artista costuma ser incontornável. O problema é que os filmes do Woody Allen também presumem essa identificação íntima. Você só tem serventia pros filmes dele se você for o tipo de pessoa que gosta dele, que assistiu a entrevista dele no Conversa com Bial, que acha charmosa a persona dele de artista sarcástico comentando o mundo de fora, que concorda com as ideias dele sobre mulheres e sexo e relações. Ou então, numa outra hipótese, você tem serventia pros filmes dele — não como filmes, mas como armas de guerra cultural — se você acha que ele é uma vítima da cultura do cancelamento.

Eu achei que já tivesse ficado batida essa linha de argumentação, mas não: Várias e várias resenhas no Letterboxd de Golpe de Sorte em Paris — geralmente as com nota mais alta — fazem questão de enaltecer Woody Allen pela coragem e perseverança e espírito artístico infatigável, pela insistência em continuar fazendo filmes mesmo com o mundo tentando calá-lo. O mundo não calou Woody Allen; o “cancelamento” dele — três filmes desde 2019, todos com bom orçamento e atores conhecidos e renomados — é literalmente só o normal de qualquer diretor. A grande punição dele foi perder o privilégio de fazer um filme por ano. O que não parece um grande suplício quando cada um desses filmes carrega a marca de um trabalho indiferente, feito por fazer, sem nenhuma ideia nova ou autoexpressão urgente. Seria impossível por definição o mundo calar Woody Allen, porque ele não tem mais nada a dizer.
O que traz a questão: por que ele continua fazendo filmes? Mesmo que tudo seja feito nas coxas, só por fazer, pra que se dar ao trabalho? Por que não pegar a fortuna de 140 milhões de dólares e simplesmente curtir a aposentadoria? E eu acho que essa pergunta pode ter respostas diferentes dependendo de se você gosta, não gosta, finge que gosta por conveniência, ou detesta o Woody Allen.
Se você finge que gosta porque quer ver ele derrotando carmicamente Dylan Farrow, a resposta é simples: ele continua porque é um gênio, e quer colocar a arte dele no mundo.
Se você realmente gosta do Woody Allen, o suficiente pra reconhecer que ele se tornou um imitador robótico de si mesmo, poderia dizer que ele quer recapturar a grandeza de que um dia foi capaz, e simplesmente não sabe mais como — que ele ficou pra trás politicamente, culturalmente, perdeu o bonde do mundo, e se refugiou nas fórmulas e ideias velhas pra ver se alguma hora consegue fazer mágica de novo.
Se você não gosta do Woody Allen, talvez julgue que o que moveu ele a fazer Golpe de Sorte em Paris e O Festival do Amor e Um Dia de Chuva em Nova York foi a mesma disposição que torna clássicos como Manhattan e Noivo Neurótico, Noiva Nervosa tão chatos: uma completa alergia à autorreflexão. Assim como ele sempre desfilou incólume com a mesma visão bitolada do mundo e das mulheres pelos círculos da alta cultura americana, pode ser que ele continue fazendo filmes simplesmente porque essa é a rotina à qual ele está acostumado, da mesma forma que alguém liga a TV pra assistir o Domingão com Huck por hábito. Pode ser que ele ainda ache que os filmes estão ótimos, que ele nem saiba que hoje dança pra uma plateia de puxa-sacos, que ele considere o final engraçadinho de Golpe de Sorte em Paris genuinamente brilhante.
Eu, particularmente, detesto o Woody Allen. Pra mim, ele é o equivalente audiovisual do próprio Pedro Bial — alguém que me causa gastrite nervosa de pensar que as pessoas considerem inteligente e sensível. Eu não acho Noivo Neurótico, Noiva Nervosa só um filme chatinho ou datado; eu acho um filme vil, feio, cruel, amargo, uma série de asseverações do quanto Woody Allen é mais sensato e culto e observador e engraçado e esperto e racional e profundo e genuíno e autêntico do que todas as outras pessoas do mundo. Nada na filmografia dele até hoje me convenceu de que ele não é um homem astronomicamente arrogante e misantrópico que foi recompensado pelo mundo por ser arrogante e misantrópico. Nada nas respostas públicas petulantes e indiferentes dele às acusações da Dylan Farrow me convenceu de que ele tem qualquer sensibilidade ou preocupação com qualquer outra pessoa além dele mesmo. E a minha opinião pessoal é que Woody Allen continua fazendo filmes simplesmente como uma exibição de poder — porque ele pode, então ele vai, queiramos nós ou não.
Tudo em Golpe de Sorte em Paris corrobora isso. Woody Allen encomenda sets ricos e caros, solicita locações exclusivas, filma um almoço qualquer no Le Grand Colbert, um encontro qualquer no jardim do Palais-Royal, uma conversa qualquer na loja da Serge Lutens, e não demonstra por esses lugares e por esses sets qualquer apreço, qualquer interesse — só a satisfação passiva do acesso. Ele contrata galãs de Raúl Ruiz e Xavier Dolan e atrizes vencedoras do César pra encenar conversas e discussões menos substantivas que as de um sitcom médio. Ele chama Vittorio Storaro, o homem de O Conformista e Apocalypse Now, pra embelezar as cores dessas mesmas conversas em plano-contraplano básico. É um filme de função fática, a mesma de um “Alô” ao atender o telefone, feito só pra mostrar que Woody Allen ainda pode e ainda faz filmes, do jeito que ele quiser, muito obrigado.
E o prazer que o filme desperta, praqueles puxa-sacos do Letterboxd e pros cinéfilos “sérios” lotando as salas da Avenida Paulista, é o prazer de vivenciar esse poder em comunhão com o Allen. Se você é o tipo de pessoa que se acha pessoalmente injustiçada por não ter mais um filme do Woody Allen por ano pra assistir, Golpe de Sorte em Paris te dá a oportunidade de se refastelar no quanto esse filme é um filme, um filme que existe, um filme que foi feito, um filme que custou dinheiro e recursos, um filme que ocupou centenas de salas de cinema, um filme que não conseguiram impedir ele de fazer e nem você de assistir. O filme não importa. O que importa é a vitória.
É o mesmo prazer vicário secreto de quem continua consumindo e pagando caro por conteúdo de Harry Potter, por mais que já tenha passado da idade, por mais porco e pedestre que o conteúdo em questão se torne: um grande foda-se-você-não-pode-me-impedir, só isso, nada além disso. A mediocridade de filmes como Golpe de Sorte em Paris é, na verdade, um plus na experiência, porque facilita o consumo plácido do tipo de pessoa que não gosta de pensar muito a fundo sobre nenhum problema social ou industrial.
E, assim como J.K. Rowling, Woody Allen não vai sofrer consequência alguma. Ele próprio já fez questão de dizer várias vezes que não perdeu nada nem foi afetado ou prejudicado pelas acusações. Ele vai morrer sereno, feliz, ao lado da ex-enteada e agora esposa, depois de uma vida de êxitos e aplausos, sem nunca sentir um grama da dor que é acusado de causar em outros. Eu já abri mão da ilusão de que algum tipo de “justiça” ainda vai se abater sobre ele e impedir ele de continuar trabalhando alegremente; não é por isso que eu espero que Golpe de Sorte em Paris seja o seu último.
Eu espero que seja o último porque não aguento mais ver críticos, acadêmicos, colegas, cinéfilos de internet e patronos do cinema de rua se reunindo de tantos em tantos anos e fingindo que esses filmes são algo além de rituais de solstício patriarcais. Não tem nada pra ver, nada pra discutir, nada pra analisar em Golpe de Sorte em Paris. É só poder pelo poder, pendurado em algum roteiro velho que ele tirou da gaveta e deu Ctrl+F pra acrescentar a palavra “Kindle”. (Numa certa cena, o marido vê o celular da esposa tocando, atende, e fica desesperado com a falta de resposta ou identificação do outro lado, como se fosse impossível saber quem ligou; a cena foi evidentemente escrita antes da invenção do smartphone, talvez até antes do bina.) Da parte do público, é mera complacência, a mesma de um fanboy da Marvel.
E que ninguém diga que é uma complacência inofensiva: enquanto O Dia que Te Conheci do André Novais penou pra pegar mais de um horário em qualquer sala de São Paulo e praticamente saiu de cartaz depois de uma semana, Golpe de Sorte em Paris continua firme e forte com três ou mais horários em vários cinemas, dos de rua aos de shopping, na terceira semana de lançamento. Não é porque Golpe de Sorte em Paris é melhor, ou mais acessível, ou tem mais apelo popular. É porque é do Woody Allen. E pra algumas pessoas isso é algo bom, aparentemente.