Essa newsletter segue viva
Explicando meu sumiço (e aproveitando pra comentar uns filmes)
Boa tarde, leitores queridos. Eu, assim como a franquia Moana, estou de volta com uma edição que era pra ter sido uma série. Vou dar um espacinho pra você me aplaudir por ter começado esse texto sobre ainda estar aqui com referência a um filme sem ser Ainda Estou Aqui. Aplaudiu? Obrigado. Sigamos.
As minhas grandes referências de pessoas que começam um monte de coisa e nunca terminam nada são Leonardo da Vinci, Luca Guadagnino, SZA, e o Professor Finbarr Catástrofe de As Aventuras de Jimmy Neutron, o Menino Gênio. De maneira geral, se você for um artista consolidado, uma criança-prodígio, ou um vilão de desenho animado, existe um certo charme em ter muita criatividade e pouca disciplina. Infelizmente eu sou só um gay que escreve uma newsletter, já tô nos meus 26 anos, e o meu hábito de começar coisas e não conseguir manter, a essa altura, só é meio feio. Mas eu sigo tentando, né, fazer o quê. É o que dá pra fazer. Então vou seguir tentando aqui também.
Apesar do subtítulo, esse texto não vai ter uma explicação elaborada sobre o motivo de eu ter ficado mais de um mês sem publicar textos novos, porque não tem explicação elaborada. Eu simplesmente mosquei, não organizei meu tempo direito, aquilo tudo que você já imagina. Eu achei que escrever textos longos toda semana fosse ser algo tranquilo de conciliar com meu trabalho. Não foi. Agora que eu tô ciente disso, vai ser mais factível me organizar de maneira coerente com a realidade pra que a newsletter de fato possa sair toda semana, então vamo que vamo. Dito isso, vai ter uma mudança: a partir de agora, os textos vão sair aos sábados, porque se mostrou impraticável ver os filmes e escrever sobre eles a tempo de publicar na quarta-feira.
Feita essa arrumação da casa, vamos ao que interessa. Nesse mês e meio que passou, eu tive vários planos de escrever sobre vários filmes. Pensei em escrever sobre Robô Selvagem. Pensei em escrever sobre Sorria 2. Sobre Megalópolis. Sobre Venom: A Última Rodada. Sobre O Quarto ao Lado. Sobre Gladiador 2. Tive a ideia de fazer um texto comparando Ainda Estou Aqui e Emilia Pérez (prováveis futuros rivais no Oscar), depois um texto comparando Emilia Pérez e Wicked (prováveis futuros rivais em páginas de charts gays). Nenhum desses textos saiu do campo das ideias. O texto que eu trago hoje não é sobre nenhum desses filmes, e sim um texto que eu comecei a escrever semanas atrás: um diário da 48ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
Pra quem não sabe, a Mostra é um festival no qual algumas centenas de filmes são exibidos em várias salas de São Paulo ao longo de duas semanas, variando entre inéditos hypados e clássicos resgatados do baú. Quem é do Rio de Janeiro talvez conheça a Mostra como a gêmea oposta do Festival do Rio; qual é a Ruth e qual é a Raquel, bom, isso fica a critério do leitor.
Todo ano, a parte mais divertida da mostra é montar a planilhinha do Excel com os filmes que eu quero ver e as sessões que eu preciso pegar pra conseguir ver todos. É sempre um momento lindo, um respiro, uma lufada de esperança e confiança no meu próprio potencial antes de eu inevitavelmente ficar com preguiça no quarto dia e acabar não vendo nem 25% do que eu queria. Em 2021, eu aprendi minha lição quando comprei a credencial de R$ 200 que dava direito a ver 20 filmes e acabei usando exatamente uma vez, pra assistir Cow, da Andrea Arnold (filme excelente, mas que não valia exatamente o preço de 20 sessões). Só não digo que foi o dinheiro mais mal-gasto da minha vida porque eu já paguei pra ver O Hobbit: A Batalha dos Cinco Exércitos em IMAX. Desde então, eu aprendi a manter minhas expectativas realistas, e a não comprar a credencial de R$ 200 em hipótese alguma. Mas, em 2024, estava me sentindo mais otimista do que o normal e me programei pra idealmente ver 23 filmes:
Os filmes em questão eram — seriam — teriam sido — em ordem: Kummatty (1979); Tudo Que Imaginamos Como Luz; Não Chore, Borboleta; Misericórdia; A Grande Cidade (1963); Reas; Abril; Sol de Inverno; Anora; Balomania; Dahomey; Fantosmia; Baby; A Cozinha; Levados Pelas Marés; O Conto das Três Joias Perdidas (1995); Eu Vi o Brilho da TV; O Brutalista; Um Homem Diferente; Também Somos Irmãos (1949); Dormir de Olhos Abertos; Parque de Diversões; Grand Tour. Agora pergunta quantos desses eu vi. Pergunta. Vou dar uma dica: o tweet a seguir acabou sendo uma previsão otimista.
No fim das contas, eu consegui ver cinco filmes nessa Mostra; felizmente, foram os exatos cinco que eu estava mais curioso pra ver. Eu comecei a rabiscar uns pensamentos sobre esses cinco filmes na época em que tava assistindo, e resolvi, essa semana, que ia publicar eles aqui, pra não serem palavras ao vento — e também porque eu quero retomar a newsletter logo. A partir de semana que vem, se tudo correr nos conformes, volta o formato “um texto por semana”. A partir do dia 21, começam os textos exclusivos pra assinantes. Por enquanto, fiquem com esses comentários curtinhos sobre cinco filmes muito fodas — e, se você ainda estiver aí depois desse tempo todo, eu só tenho a agradecer, e prometer que daqui pra frente os textos VÃO sair com regularidade. Chega de palhaçada. Vamos lá.
17/10: Tudo Que Imaginamos Como Luz (2024, dir. Payal Kapadia)
Esse era o filme da Mostra que eu mais tava animado pra assistir, por três motivos. O primeiro era que um amigo meu em quem eu confio muito pra filme é apaixonado por A Night of Knowing Nothing, o primeiro longa da Payal Kapadia, de 2021. O segundo era que, durante o Festival de Cannes de 2024, eu criei uma relação parassocial com esse filme e torci muito pra ele levar a Palma de Ouro. O festival de Cannes, pro cinéfilo médio, é o maior exemplo que existe de gozo com o pau alheio; a gente torce loucamente por grandes filmes que ainda não assistiu e nem sabe quando vai assistir, baseado unicamente em vibes e simpatia pelos diretores/atores/países envolvidos. É uma delícia.
O terceiro e mais importante era o que eu sabia sobre o filme. Uma das coisas de que eu mais gosto no mundo são retratos urbanos em forma livre, por assim dizer — filmes que acompanham o fluxo e refluxo de grandes cidades e das pessoas nelas sem se ater muito a localizações específicas ou estruturas narrativas rígidas, deixando o excesso de informação metropolitano transbordar em excesso de informação audiovisual, pairando ao sabor do vento misterioso das esquinas e dos trens. Tudo Que Imaginamos Como Luz faz isso pela cidade de Mumbai, que, ao que parece, é muito parecida com São Paulo, inclusive no quesito de reunir pessoas de toda a Índia buscando melhorar de vida e encontrar afeto contra o empuxo de uma ideologia atomizante e individualista. O retrato que a Kapadia faz da cidade é atordoantemente bonito, atento em igual medida às luzes e aos rostos e aos conjuntos escherianos rua-prédio-placa-carro-clima; ela faz Mumbai parecer linda sem deixar de ser um lugar real com problemas reais, o que falou muito com esse nativo de uma cidade que eu acho linda mas não posso negar que é um círculo do inferno de Dante. E ela faz pela cor azul mais ou menos o que o Wong Kar-Wai faz pelo verde — aquele esquema de transformar uma tonalidade levemente irreal em vibração espiritual do todo das coisas. Só aí, o filme já começou com muitos pontos comigo.
Como se não bastasse isso, Tudo Que Imaginamos Como Luz levou aproximadamente quinze segundos pra fazer eu me apaixonar pelas protagonistas, a Prabha e a Anu, duas enfermeiras em extremidades opostas do desafio do amor: uma suspensa na sombra de um abandono vendo o mundo passar, e a outra vivendo o afã de uma paixão que o mundo não quer comportar. A Kapadia, nesse filme, entende o amor tridimensionalmente, de todos os ângulos, inclusive o da ausência; ela cria uma dicotomia simples e inteligível entre a melancolia da Prabha e a ânsia da Anu, e aí usa essa dicotomia pra produzir arroubos poéticos gigantescos em coisa de segundos. É chocante o quanto o filme te faz entender as protagonistas e a evolução profunda da relação entre elas sem quaisquer diálogos explícitos a esse respeito. É chocante o quanto eu me emocionei com o amor entre a Anu e o namorado dela, o Shiaz (um gatinho, inclusive), a ponto de ter recobrado um pouco da minha própria fé no amor; eu colocaria a cena de sexo dos dois como uma das melhores que eu já vi na minha vida mesmo sendo uma cena de sexo hétero. Normalmente, filmes nos quais eu entro com expectativa demais têm uma tendência quase inevitável a me decepcionar. Não nesse caso. Eu amei Tudo Que Imaginamos Como Luz.
20/10: A Grande Cidade (1963, dir. Satyajit Ray)
Tem vários critérios pelos quais é possível se debruçar sobre a questão de “quem é o melhor cineasta de todos os tempos”, todos inevitavelmente arbitrários, mas, já que é uma discussão divertida apesar de vã, vamos supor que se use o critério da prosa. Tem diretores que são apaixonantes pela “prosa” cinematográfica deles — pelo jeito como eles emendam uma imagem na outra, pela especificidade do olhar que eles lançam sobre as coisas, pelo momento-a-momento, independente do “conjunto” do filme em si. Desde que eu conheci o trabalho do Satyajit Ray anos atrás, eu me mantive convicto na crença de que ele é o diretor com a melhor “prosa” da história do cinema; ele pode mostrar uma pessoa andando na rua ou preparando almoço ou deitada olhando pro teto, e vai ser a coisa mais incrível que tu já viu na vida. (Ajudava muito que ele tivesse o apoio do Subrata Mitra, provavelmente o maior diretor de fotografia que já existiu.)
Como se ciente de que “melhor prosa da história do cinema” tem sido minha frase pronta sobre Satyajit Ray nos últimos quatro anos, A Grande Cidade me deu um sacode e me lembrou de que, além de fazer cinema inebriante no correr dos momentos, o Ray também era um “conjuntista” de mão cheia. Eu tinha certeza de que precisava aproveitar a programação de clássicos da Mostra pra ver algum dele na tela grande, e, uma vez que já tinha tido essa oportunidade com A Canção da Estrada (um dos, sei lá, 20 filmes que mais me impactaram na vida), resolvi ver o mais aclamado do Ray que ainda me faltava — presumindo, pelo título e pelo cartaz e pela temática, que seria um filme de “fluxo urbano” parecido com Tudo Que Imaginamos Como Luz, que poetizasse o turbilhão de Calcutá da mesma forma que as cenas do Apu bêbado em O Mundo de Apu. Não foi exatamente o caso. A Grande Cidade é um filme de estrutura clássica, fortemente narrativo e carregado de epistemologia pop da mais certeira — o tipo de filme que até seu tio que nunca viu cinema de arte indiano pode assistir e falar “Uau, que filmaço”, de tão óbvio o brilhantismo gestáltico e tão irresistível o empuxo narrativo da coisa toda. O que não quer dizer que a prosa deixe de ser brilhante.
Na verdade, mais do que qualquer filme do Ray que eu vi até aqui, A Grande Cidade ilustra o quanto a sensibilidade poética dele era indissociável de uma diligência enorme em relação ao gestalt. É um filme com algumas das imagens mais memoráveis do cinema — só o que ele e a Madhabi Mukherjee fazem com um par de óculos escuros já é coisa de doido — mas cada uma dessas imagens contribui mais e mais pra um projeto político e psicológico absurdamente complexo, que usa as subidas e quedas da narrativa clássica como veículo pra uma espécie de acerto de contas geral com toda a condição humana de Bengala — e por extensão da Índia, e por extensão do mundo — em 1963.
É tudo feito de maneira exímia; toda a rede de relações e conflitos que se deslinda diante da Arati conforme ela se acostuma ao papel de assalariada e provedora da família é supremamente interessante, tudo sempre divertido, tudo sempre tenso, tudo sempre forte. É como se o Ray estivesse atendendo a um chamado, aproveitando o privilégio de ser um artista que alinhava maestria estética a progressismo político raro — esse é o tipo de filme que parece ter sido feito hoje e enviado de volta no tempo, de tão incisivo o olhar que ele lança sobre os absurdos patriarcais e capitalistas da própria época — pra fazer um filme-monumento que ninguém mais poderia fazer além dele. Eu teria acompanhado a vida da Arati de bom grado por mais três horas — mas, se nos outros filmes do Ray eu tinha esse mesmo sentimento primariamente pela vontade de ver o jeito como ele filmava os personagens, dessa vez eu teria amado continuar assistindo a Arati mesmo pelo olhar de outro diretor. É esse o tamanho da criação do Ray aqui. Eu amei A Grande Cidade.
21/10: Anora (2024, dir. Sean Baker)
Embora seja um grandessíssimo filho da puta, Sean Baker é provavelmente meu diretor americano favorito em atividade. Os filmes deles têm aquela habilidade cassavetiana de bombardear o espectador com vida, em toda sua fuligem e fulgura, até o conceito de Vida se tornar uma espécie de emulsão dissociativa, com uma estranheza equivalente ao sentimento de repetir a mesma palavra várias vezes — fazendo emergir uma nova classe de vida, na qual, exatamente como a gente conhece, sem nada acrescido ou subtraído, ela carrega a mesma alteridade opulenta de uma fantasia. Essa aptidão casa particularmente bem com Anora, que é um filme exatamente sobre vida escorregando pra fantasia sem deixar de ser vida, e sobre como a contradição acaba se tornando insuportável. Não é meu favorito do Baker, mas de certa forma é meio que o magnum opus dele; não me admira ter ganhado a Palma de Ouro e agora ser favorito (dizem os pundits) pro Oscar de Melhor Filme.
Não me admira, também, ter sido um sucesso bem grande de bilheteria pros padrões do Baker, porque é um filme com os ingredientes principais do cinema original popular que tem ressurgido nos EUA: uma abundância de prazer, e uma dose dolorosa de sobriedade. É quase impossível não curtir os primeiros 30 minutos de Anora, justamente porque eles partem da resistência-a-curtir e se propõem a desafiá-la; Sean Baker sabe que o espectador, assim como a Ani, vai ter mil ressalvas quanto a baixar a guarda e se permitir embarcar no sonho acordado de riqueza e acesso e tesão oferecido pelo Vanya. O truque de mágica do filme é tornar o sonho tão tátil, tão avassalador, tão eufórico, que a ciência racional do absurdo daquilo tudo vai sendo erodida até virar pó. Chega uma hora que o encanto é grande demais, Ani capitula, eu capitulo, nem lembro mais do que tinha medo. E aí Anora revela, ao longo de 90 minutos excruciantes, que não é um filme sobre o sonho, e sim sobre a experiência de acordar.
É uma estratégia perfeita pra um filme crowd-pleaser, porque ninguém quer sofrer por 2 horas no cinema, mas o solavanco do sofrimento reprimido — a consciência esmagadora da insatisfação com a própria vida que só vem com uma esperança frustrada de mudança — faz sentido intuitivo pra qualquer um que precise trabalhar pra ganhar a vida. Conforme mais gente for assistindo Anora, talvez apareçam discussões enfadonhas sobre se o filme “romantiza” ou não a profissão de stripper, mas o ponto-chave da vida profissional da Ani é que ela é horrível da mesma forma que qualquer vida profissional é horrível — não tanto pelos ossos do ofício em si, que tem momentos bons e ruins como qualquer profissão, e sim por ser obrigatória. Anora localiza uma dimensão existencial no sofrimento proletário — um desespero pelo inescapável, pela condenação a ter que viver a própria vida, pela total inacessibilidade do mundo melhor members-only que existe ali do lado — que é raro ver até nos filmes anti-capitalistas mais radicais, talvez porque o próprio Baker não seja de todo anti-capitalista e reconheça sem pudor algum o quanto ser rico é delicioso. E, assim como em Tangerina e Projeto Flórida, ele — junto com a DIVONÁSTICA Mikey Madison — faz algo raríssimo no cinema dos EUA: pinta a protagonista de forma tão carismática, tão vívida, tão hipnótica de assistir, tão gigante e feroz na sua humanidade, que qualquer encaixotamento analítico ou julgamento moralista se torna inviável. Ani não é isso ou é aquilo; Ani é. Eu amei ela. E eu amei Anora.
22/10: Balomania (2024, dir. Sissel Dargis Morell)
Claro que, com todo respeito ao método de reconstrução ficcional do Sean Baker, às vezes a melhor forma de capturar um turbilhão humano complexo demais pras estruturas engessadas do cinema hegemônico é… simplesmente indo lá e capturando. Eu fiquei curioso pra assistir Balomania pelas resenhas de gringos que assistiram o filme em festivais na Europa e na Austrália e ficaram maravilhados com o mundo totalmente NOVO e DESCONHECIDO que o filme explorava a fundo; qual não foi minha surpresa quando o sentimento mais intenso que o filme me despertou, reiteradamente, foi o de familiaridade.
Como esse não é um filme tão famoso quanto os anteriores (nem foi lançado comercialmente em lugar nenhum do mundo ainda), cabe uma breve apresentação: Balomania é um documentário filmado em São Paulo e no Rio de Janeiro no começo da década de 2010 pela diretora dinamarquesa Sissel Morell Dargis, que acompanha a cultura dos baloeiros e os esforços hercúleos deles pra construir e soltar balões de ar quente gigantes mesmo com todas as pressões legais e econômicas contrárias. Pra conseguir fazer um retrato íntimo desse universo, a diretora se inseriu nele de corpo e alma durante anos, desenvolvendo uma relação de companheirismo e confiança com os baloeiros, conhecendo as suas famílias, dormindo nas suas casas, acompanhando as confecções clandestinas e os lançamentos dos balões, fugindo da polícia junto, filmando tudo em vídeo portátil de baixa resolução.
O primeiro resultado disso é que Balomania é um daqueles documentários que parecem mais urgentes que o cinema, com stakes pessoais em que a própria produção do filme (e portanto a própria experiência do espectador) se vê implicada. O segundo resultado é que, assim como no trabalho do Sean Baker, esse é um filme livre de julgamento: toda a intenção da Sissel (que eu vou chamar assim, pelo primeiro nome, porque os participantes do filme chamam ela assim) é entender e conhecer, de peito aberto, atenta ao perigo da atividade dos baloeiros mas não menos fascinada pelo que eles criam. O terceiro resultado é que, vendo e registrando tudo de perto, com o olhar relativamente fresco de uma estrangeira pra qual o país inteiro é meio alienígena e portanto não existe gradação de “normalidade” entre os recantos da cidade, esse foi um dos retratos mais interessados, vibrantes e texturizados da periferia de São Paulo que eu já vi num filme.
Eu cresci em Cidade Ademar, na Zona Sul de São Paulo, e, na época que o filme registra como apogeu dos baloeiros antes do endurecimento das leis, balões eram algo rotineiro mas distante pra mim. De tempos em tempos aparecia um no horizonte, pela janela, flutuando laranja e fulgente contra o céu da noite; meus pais comentavam “Ai ai, eles ainda insistem em lançar esses balões, isso é perigoso, isso mata gente”, eu ficava olhando e tentando adivinhar a que distância eles estavam, uma hora eu me distraía ou eles sumiam. Eu não fazia ideia do tamanho. Eu sabia pouquíssimo sobre baloeiros até assistir Balomania, na verdade — e ver o filme revelar a profundidade daquela subcultura, que se espraiava por ruas e esquinas e casas geminadas estreitas tão parecidas com a minha, foi como me ver num livro de fantasia young adult, descobrindo que o mundo em que eu vivia sempre foi cheio de magia oculta que eu não podia ver.
Eu uso a palavra “magia”, aqui, porque só ela consegue abarcar o elã dos baloeiros do filme, que se apresentam, acima de tudo, como artistas. Balomania mostra como eles se dedicavam incansavelmente, se organizavam em equipes gigantes com tarefas cuidadosamente definidas, montavam os balões metro a metro e estaca a estaca e guardavam cada pedaço em esconderijos por meses ou anos até terem a chance de juntar tudo e soltar. Em termos de escala de projeto, só o trabalho envolvido já é quase inconcebível pra mim, que mal consigo manter uma newsletter. Enquanto registra tudo isso, a Sissel pergunta diretamente pros baloeiros o que ela quer saber sobre eles e as suas motivações, e os baloeiros respondem, também diretamente — eles próprios explicando que fazem aquilo porque têm uma ânsia por cultura e arte que não seria sanada de outra forma, que fazer balões mantém os jovens da periferia ocupados e longe do crime, que é uma atividade fundamentalmente maluca e insustentável por ser clandestina sem dar nenhum dinheiro, que justamente aí é que reside uma parte do frisson.
Aí, de tantos em tantos minutos, o filme mostra a atração principal, que são os balões em si — e cada cena de um balão novo sendo solto é absolutamente arrebatadora. Eles são tão, tão, tão grandes, tão detalhados, tão bonitos, as bandeiras penduradas neles são tão enormes e tão cheias de detalhes. Quando alguma das bandeiras é composta de milhares de velas coloridas formando uma pixel art gigante, então, dá vontade de gritar. Não tem nada que eu possa escrever aqui que vá fazer jus à experiência de assistir os lançamentos em Balomania, com o vídeo granulado barato da Sissel enfatizando a monumentalidade dos registros num paradoxo épico. Pra além de ser um filme agudamente observador do ponto de vista político e social (que passa, propositalmente ou não, por inúmeros insights sobre as mudanças da periferia paulistana na última década), um “filme de convivência” caloroso sobre uma fatia demográfica negligenciada pelo nosso cinema, e um tributo irresistivelmente comovente à necessidade humana de fazer arte, Balomania é cinema puro. Cinema que se basta em si, tornando todo o resto acessório à materialidade da imagem. É um filme em que as questões políticas tangentes à atividade dos baloeiros — o perigo, o risco ambiental, a suposta antissocialidade — se subsomem no êxtase óbvio, autoevidente, inquestionável da arte deles. Você vê eles se reunindo, vê o balão subindo, subindo, subindo, e você entende. Pode continuar sendo contra, por N motivos evidentes no próprio filme. Mas entende. Eu entendi mesmo — principalmente — nos momentos em que mal conseguia acreditar no que eu tava vendo com meus próprios olhos. E foram mais momentos assim do que na grande maioria dos filmes que eu já vi na vida. Eu amei Balomania.
26/10: Eu Vi o Brilho da TV (2024, dir. Jane Schoenbrun)
Esse foi o que eu mais gostei dos cinco. Também é o mais difícil de escrever a respeito. Jane Schoenbrun é daquele tipo de artista que emite a própria signologia numa frequência muito estreita, criando uma relação alquímica com os olhos e os músculos de quem tá na mesma frequência — mas só os de quem tá na mesma frequência. Quando eu assisti We’re All Going to the World’s Fair, o filme anterior dela, eu reconheci na minha frente um trabalho extremamente bem-feito, inteligente, e sensível, mas o filme não se embebeu nos meus nervos da maneira como eu esperava. Eu fiquei me perguntando se ela seria um daqueles cineastas que eu aprecio e respeito mas não consigo entrar tanto na pira.
Corta pra dia 26 de outubro de 2024, e eu estava chorando de boca aberta com Eu Vi o Brilho da TV, um filme que me entendeu e me acessou num nível tão profundo que eu cheguei a ficar assustado, como se tivesse passando por algo sobrenatural. E nem era tanto pelo Tema — eu já falo do tema — quanto pela imagética da Schoenbrun, a maneira como ela orquestra atmosferas, destila sentimentos em sequências de planos, mira elipses e silêncios nos pontos exatos, usa cores — um lilás específico, um rosa particularmente forte, um azul esmagador. Tem muita coisa que eu não saberia explicar sobre a minha reação a Eu Vi o Brilho da TV, não sem pelo menos rever umas 5 vezes e esmiuçar o método estético da Schoenbrun e investigar o timing exato de todas as músicas de shoegaze com que ela preenche a trilha sonora — coisa que eu não tenho interesse algum em fazer, porque quero que esse filme continue sendo uma espécie de encantamento pra mim. São poucos diretores que me fazem sentir completamente perdido dos meus próprios referenciais e critérios, à deriva e ao sabor do mar deles. Dessa geração, ela talvez seja a única americana.
Sabe quem ela me lembra? David Lynch. Que é uma comparação autoevidente a ponto de ser óbvia e quase tacanha — filme surrealista de angústia suburbana com acenos pro terror, parecido com Lynch, não diga? — mas que é necessária pra abarcar o tamanho de Eu Vi o Brilho da TV como artefato cultural; é um filme que desperta a mesma sensação de novidade que Veludo Azul — um filme menor do Lynch, e nem de perto tão bom quanto esse — despertou no público americano em 1986. A mesma profusão de imagens-pânico, a mesma cócega no inconsciente. Com a diferença crucial de que Eu Vi o Brilho da TV, em vez de um filme conservador sobre o fascínio mórbido da transgressão, é um filme LGBT sobre a necessidade ululante da transgressão diante da morbidez do conformismo. Um filme sobre um terror em oposição a outro, se ficar o bicho come, se correr o bicho pega. Veludo Azul se resolvia com a restauração do normal conhecido e aceitável, feliz pra todos, com a transgressão e o desconhecido pairando como ameaça sinistra; Eu Vi o Brilho da TV faz ao espectador uma pergunta: O desconhecido assusta, transgredir é perigoso, mas você está disposto a pagar o preço de não transgredir e ficar onde já conhece?
Eu estou tentando não dar spoilers, porque só falar dos temas de Eu Vi o Brilho da TV já é dar pistas demais sobre um filme que fica melhor sendo descoberto em tempo real. Estou tentando também não dar com os burros n’água tentando oferecer, do alto da minha experiência cisgênero, uma explicação inovadora e perceptiva pra metáfora trans do filme, que é central à afetividade mobilizada pela Schoenbrun; se você quiser ler análises realmente completas de Eu Vi o Brilho da TV, procure qualquer crítico ou crítica trans. Mas, como homem gay cis, eu ainda me senti tomado de assalto pela maneira direta, sem fuga, sem floreios, como o filme coloca o sentimento de não-pertencimento a um mundo hostil, e a forma como qualquer fuga — qualquer possibilidade de fuga — qualquer coisa que permita imaginar uma fuga — se torna imediatamente crucial, se torna central à vida, se torna tudo, por mais esdrúxula que seja; fiquei dias pensando na identificação do processo de “crescer”/“amadurecer”/“evoluir” nesse mundo hostil — abrir mão da fuga esdrúxula, se resignar ao “certo” — como, no mais das vezes, um processo de destruição complacente do nosso próprio eu, que vai se desenrolando até não ter mais escapatória; fiquei pensando também, depois de um tempo, no próprio perigo de abraçar o esdrúxulo se o esdrúxulo em si for destrutivo (evitando entrar em detalhes, o filme te faz pensar na ideia de se matar enterrado num caixão como uma libertação sedutora, e deixa por sua conta perceber a posteriori o quanto aquilo também é automutilação).
Mais do que tudo, fiquei pensando muito na inocência. Na inocência da criança que simplesmente gosta do que gosta e se interessa pelo que se interessa, e na violência gigantesca acachapante inconcebível de transformar os gostos da criança em dores, em vergonhas, em motivos pra punição, em obrigar ela a pensar profundamente e em mil camadas sobre o próprio gênero e a própria sexualidade à guisa de poupar ela de pensar nessas coisas, ensinando — implicitamente — que ela precisa pensar pra entender, entender os riscos que corre, e se proteger, e se resguardar, e se fechar, e deixar de ser esquisita, e de preferência deixar de ser o que quer que ela seja e ser outra coisa, e se não puder então pelo menos aprender a ser aquilo longe da vista dos outros. Fiquei pensando na avalanche de ódio e dor que toda criança LGBT experimenta, e na forma como artefatos culturais como o The Pink Opaque se tornam uma espécie de next best thing, um substituto pra vida, que — não à toa — fica sendo almejado como possível totalidade da vida.
Até que é tarde demais pra ser criança, até que deixa de ser possível sentir aquilo que cada um de nós sentia vendo o seu respectivo The Pink Opaque aos 13 anos de idade, até que a gente se vê transportado pro outro lado de uma ponte já rachada, forçado a ser adulto pra sempre — e começa a concluir que, se é tarde demais pra seguir o caminho de crescimento amado e contemplado e feliz que idealizava ter através do The Pink Opaque, então é tarde demais pra que a criança se torne um adulto também amado e contemplado, e portanto viver é algo que não importa mais, e pode ser feito de qualquer jeito. Mas não é tarde demais. No fim das contas, esse é um filme sobre como cada um tem a prerrogativa — e, se tem a prerrogativa, tem a obrigação — de fazer aquilo que quer fazer, e dar o amor que falta pra própria criança. É um filme sobre como a mídia não basta, mas pode mostrar o caminho. Eu imagino que ele próprio vá mostrar o caminho pra muita gente, se é que já não tá mostrando. Minha vida, por exemplo, mudou depois de assistir. Eu amei Eu Vi o Brilho da TV.
Nossa, não sou de assistir filmes, mas sinto que preciso começar