Bem-vindos à Cultfork, uma coluna nova em que eu vou dar uma nota de 0 a 100 (baseada estritamente em afeto e apreço pessoal pelo filme, não em “medição” de “qualidade”) e escrever um pouquinho sobre o que achei de todo filme que eu assistir — ou pelo menos da maioria. As primeiras edições vão ser abertas; depois, se eu conseguir manter, vai se tornar o conteúdo exclusivo pra assinantes da newsletter enquanto os textos longos vão ser abertos.
Aviso: Esse texto contém SPOILERS ENORMES.
Imagens bonitas, imponentes, com uma muscularidade maximalista que o Eggers sabe aproveitar melhor do que qualquer outro nome do primeiro escalão atual de cineastas pop. Espetáculo ele entrega, atmosfera também, com certeza, não nego.
Porém.
Os erros desse filme (e são muitos: o Aaron Taylor-Johnson simplesmente não tem carisma nenhum e afunda um personagem que deveria ser o mais divertido e efervescente do filme pra que a dicotomia mundano/oculto funcionasse; o que a câmera e o Simon McBurney fazem com o Herr Knock é tão protocolar, tão lacaio-maluco-genérico, de um jeito tão destoante do maneirismo do resto do filme, que chega a ficar óbvia a escolha ativa contínua do Eggers de não explorar o componente sexual na submissão dele ao Nosferatu; o bigode impede o Conde de ser uma força etérea morbidamente hipnótica na sua total e completa não-humanidade, e reduz ele a só um cara meio feio, lamento, escolha horrível, bigode horrível) todos apontam na mesma direção, que é a de que esse é um filme sem libido. E isso seria um problema na maioria dos filmes, mas nesse é uma catástrofe.
Veja bem, se você quer que eu me comova e me interesse pelo impasse da Ellen entre a vontade racional de ser feliz com o Thomas e o desejo borbulhante no âmago dela, então eu preciso entender o impasse — eu preciso entender o desejo. O que atrai a Ellen no bichão? Qual o apelo? Qual a vontade, qual a satisfação da qual ela precisa abrir mão no casamento dela com o Thomas? A gente intui que ele tem libido mais baixa que a dela, mas isso pouco diz sobre o que ela sente pelo Orlok. Se ela tem tesão físico no Orlok, o filme não se interessa por isso; é um filme de monsterfuck que nunca se permite nem por um instante cogitar ou investigar a sensualidade do monstro, nunca se fascina pelas particularidades do corpo dele (que no mais das vezes é escondido e usado como jumpscare), nunca mostra o que tem de específico (e de especificamente erótico) na forma como a Ellen vê aquele corpo. Ela diz que o Thomas nunca comeu ela tão bem quanto o Orlok, beleza, mas por quê? O que é esse comer bem? O que ela deseja do sexo que o Thomas não proporciona pra ela e o Orlok proporcionaria?
É a intensidade do toque, a agressividade, o vigor das socadas, o bigode roçando em algum lugar, alguma coisa que ele fala no ouvido dela com o sotaque absurdo dele? O que é? A gente não vê. É só a ânsia de ser dominada, mesmo, dom/sub kink basicão? Se sim, é uma conclusão chocantemente blasé pra um filme que promete ser movido pelos recessos ocultos e reprimidos do desejo feminino. Tão blasé que nem o Eggers se interessa em explorar muito a dinâmica pra além do cerimonial padrão do "Você vai ser minha" / "Sim, senhor"; o trailer de dois minutos de Babygirl que passou antes do filme tinha mais momentos de frisson BDSM palpável do que Nosferatu inteiro. Aliás, o grande problema é exatamente que a carnalidade entre a Ellen e o Nosferatu não é explorada, ponto: não só a natureza do encontro inicial deles é mantida vaga e nebulosa, mas, quando eles finalmente transam, o beijo é casto e parece querer chocar só por ser um beijo, e, do sexo em si, a gente só vê o Conde devorando o peito da Ellen. Beleza, imagem forte, mas esse tempo todo era essa a pira da Ellen, um fetiche ultra-específico em ter o tórax rasgado e mastigado, que ninguém com outra dentição poderia realizar?
Eu não sei se esse era o único apelo do Orlok pra ela, mas eu sei é que essa é a única coisa que Nosferatu enfatiza, inclusive no sexo dela com o Thomas, o que me leva a crer que o interesse do Eggers no sexo é estritamente simbólico: o que importa pra ele não é o sexo em si, e sim o que ele Representa. Dois problemas, porém, com sexo estritamente simbólico: 1) Zzzzzzzzzz. 2) A melhor coisa dessa iteração de Nosferatu, de longe, é a dinâmica entre a Ellen e o Thomas — que sobressaem, nas atuações trêmulas e sinceras da Lily-Rose Depp e do Nicholas Hoult, como nada simbólicos e nada alegóricos, só duas pessoas reais presas nos trâmites de um pesadelo gótico. É palpável e genuinamente comovente a angústia da Ellen por querer tanto se satisfazer com o Thomas, ter tanto apreço pela tendência dele a ser solícito e carinhoso, e simplesmente não conseguir se contentar com aquilo. É legitimamente interessante a tensão entre o trato gentil e doce do Thomas e a forma como ele ignora e despreza sem perceber as vontades da própria esposa. É nesses conflitos quase realistas psicológicos, mais do que em qualquer coisa envolvendo o Nosferatu em si, que residem, claramente, a energia e o interesse do Eggers. E, pra esses conflitos serem levados a cabo, seria crucial o sexo proibido ser tão real, tão vibrante, quanto a relação à qual ele se opõe.
No fim, tudo é abandonado, tudo descamba pro campo metafórico: dependendo da sua interpretação, a Ellen quer o Orlok porque O Grooming Cria Uma Dependência Emocional Vitalícia, ou porque Mulheres Têm Desejos Que A Sociedade Não Entende Nem Permite Que Elas Explorem, ou porque Todo Ser Humano Anseia Secretamente Por Ser Autodestruído — mas nunca, na mise-en-scène do Eggers, porque ela quer o Orlok. Não existe prazer, mórbido ou não, nem corporeidade, mórbida ou não, na ligação entre os dois. Pior ainda: mesmo no campo metafórico, o que o filme acaba Tendo A Dizer é que a entrega da Ellen ao próprio desejo é uma espécie de sacrifício super-heroico que salva a cidade. Não só o desejo dela não interessa ao filme como ainda se torna subsidiário à função dela como mártir. Zzzzzzzzzzzzzzzz. Se era pra ser Geni, que ela tivesse seus caprichos.
Explicação enunciativa da escala:
0-10: Chega a ser piada
11-20: Odiei muito
21-30: Odiei
31-40: Não gostei
41-50: Mais ou menos
51-60: Gostei
61-70: Gostei muito
71-80: Amei
81-90: Virou xodó
91-100: Puta que pariu
11-20: Odiei muito
21-30: Odiei
31-40: Não gostei
41-50: Mais ou menos
51-60: Gostei
61-70: Gostei muito
71-80: Amei
81-90: Virou xodó
91-100: Puta que pariu
eu vou opinar
é..................... eu gostei bastante do filme, mas, de fato, é um filme sem libido. ele quase tende ao moralista com as escolhas estéticas, ainda que o discurso implícito seja o oposto. é bem contraditório mesmo.