Uma das ideias mais antigas, mais persistentes e mais invisíveis da crítica de arte é a ideia de que estilo é feminino e substância é masculina. George Puttenham, um dos críticos literários mais influentes da história da língua inglesa, escreveu em 1589 que os “ornamentos” de um poema eram como a tinta vermelha nos lábios e bochechas de uma moça: lindos se usados na medida correta, ridículos se aplicados em excesso ou sem juízo. De lá pra cá, nas catacumbas da epistemologia, à revelia do público entre o qual essas ideias são propagadas pelos donos do mundo, se estruturou toda uma corrente de pensamento que dita mais ou menos isso: os aspectos formais, cosméticos, sensuais de uma obra de arte são femininos-superficiais-artificiais-fúteis, enquanto os aspectos “conteudísticos” — a mensagem, a construção narrativa, o conflito, o tema — são masculinos-profundos-reais-importantes. Como toda dicotomia fiada no gênero, a dicotomia estilo-substância é impraticável, não faz sentido algum, é constantemente contradita pelo mundo real — e no entanto influencia tudo.
Quando eu digo tudo, é tudo — inclusive o próprio gênero, que se estruturou, nos últimos 500 anos, muito na base do masculino como matéria-prima e do feminino como ornamento. (Não quero ser o cara que cita a Bíblia pra falar de gênero, mas né, costela de Adão, etc, etc.) Tudo é gênero, tudo é estética, gênero é estética, estética é gênero. Você não está imune a nada disso: é dessa sopa primordial que nasceu o seu ex-gerente de repartição que fazia post de 8 de março agradecendo as mulheres por “embelezarem nosso dia-a-dia”, e é também dela que nasceu Coringa (2019), o filme favorito desse gerente.
O que tinha de interessante em Coringa? Pouquíssima coisa, mas, se algo, a confusão — talvez a fraude — de gênero. Dirigido e co-escrito pelo auteur da trilogia Se Beber, Não Case, Coringa é um dos filmes mais agressivamente, histericamente, ostentosamente masculinos já lançados pela Hollywood moderna — mas, se fosse só isso, não teria chamado lá muita atenção. Mesmo porque se fosse pra caçar “substância” ali, não ia ter como: Coringa é um filme dramaturgicamente e politicamente vazio, sem nada “em mente” nem nada a “dizer”. Um olhar hegemônico masculino não encontraria nele o mesmo combustível pra autoafirmação da própria seriedade que num Poderoso Chefão, num Batman do Nolan, num filme antigo do Scorsese. Coringa não é nada “sério”; a ideia de “comentário político” do diretor de Se Beber, Não Case é uma manchete de jornal escrito “KILL THE RICH: A NEW MOVEMENT?”. Mas, como todo mundo sabe, o olhar masculino anseia por se libertar de si mesmo, e Coringa, apesar de fortemente masculino nos seus códigos e nos seus “temas”, tinha algo que a maioria dos filmes de machinho não têm: sentimentalismo.

Tal qual o post-grunge e o nü-metal nos anos 2000, Coringa fez um sucesso estrondoso casando os códigos da masculinidade performática com a expressão completamente desinibida de emoções que homens normalmente não podem expressar: solidão, fragilidade, humilhação, fraqueza, tristeza abissal, vontade de chorar berrando. Assim como uma música média do Nickelback, o assunto de Coringa era “coitado de mim, coitado de mim, coitado de mim, PORRA”, expresso de todas as formas e com todos os recursos, sem pudor algum — mas masculinamente. A própria figura do Coringa do Joaquin Phoenix impactou tanto o imaginário cultural do mundo, inspirou tantos icons de rede social e selfies com filtro de palhaço, justamente por causa do gender trouble implícito: o homem sério, sisudo, frio e calculista, com o rosto coberto de maquiagem dando contornos mais vivos e extravagantes à sua consternação emocional do que o rosto sisudo sozinho permitiria.
Pra mim, só deixando claro, tudo isso foi completamente enfadonho. Ver homens héteros tensionando de leve os limites do gênero é como ver crianças da 1ª série apresentando trabalhos sobre ecologia; é até fofo, mas você sabe que dali não vai sair nada de disruptivo. Mais do que bom ou ruim, o que não importa tanto assim (nos termos críticos ortodoxos de competência-da-direção, qualidade-do-roteiro, etc., Coringa é horroroso, mas meio que foda-se), eu achei Coringa entediante, uma exploração zelosa e grandiloquente de ideias estéticas que não me interessavam muito. Uau, homem também ama. Uau, homem também chora. Uau, homem também sofre se você ignora. A repercussão foi mais entediante ainda: discussões acaloradas sobre se o filme era perigoso ou não, de esquerda ou de direita, celebratório ou condenatório. Um filme que era o equivalente audiovisual de uma música do Nickelback. Normalmente, quando eu odeio muito um filme, eu fico alimentando o desejo secreto de que todo mundo também odeie tanto quanto eu; no caso de Coringa, eu só queria que todo mundo esquecesse logo o filme e seguisse em frente.
Dito tudo isso, quando a Continuação Musical De Coringa Estrelando Lady Gaga Como Arlequina foi anunciada, eu tive a reação contraintuitiva de ficar muito interessado. Sim, eu sou gay, sim, o tipo de gay que acompanha os altos e baixos da Lady Gaga como os de uma prima querida, mas não era só essa a explicação, até porque eu tenho meus limites como fã; até hoje eu não vi Casa Gucci, por exemplo. Eu me interessei porque esse gancho — um romance musical, com a diva gay suprema da minha geração como Arlequina — parecia exatamente o gancho certo pra permitir que o filme explorasse de forma realmente divertida o miolinho de fascínio do primeiro filme, que era a confusão de gênero. Parecia uma chance de o diretor de Se Beber, Não Case abrir mão da pose pseudo-séria e abraçar de vez o camp hipersentimental que diferenciou e permitiu o sucesso de Coringa 1. Certamente até o artista mais sem graça do mundo não conseguiria achatar o prazer dionisíaco intrínseco de um musical idiota com a Lady Gaga, né? Né?
Leitor, acredite ou não, ele conseguiu.
E conseguiu por um motivo muito simples: você me desculpe o identitarismo, mas ele ainda é o diretor de Se Beber, Não Case. Eu não vou ser redutivo a ponto de dizer que um cineasta homem hétero médio sempre vai tender automaticamente às preocupações e interesses ditados pela masculinidade hétero dominante culturalmente, mas, galera, essa é a filmografia do cara:
Me diga você, o que você esperaria que um cineasta com essa filmografia concluísse do sucesso de um filme como Coringa? Que hitou por ser camp? Que os detentos da masculinidade anseiam pela liberdade do dramalhão? Que o nü-metal está voltando com tudo? Essa era minha expectativa com base no mote de Coringa: Delírio a Dois, mas o erro foi meu de esperar tanta perspectiva do diretor de Se Beber, Não Case. Nada disso. A conclusão a que ele chegou com o sucesso de Coringa, inevitavelmente, foi a de que ele era um gênio.
E não só um gênio, mas um gênio incompreendido. Em Coringa, o diretor de Se Beber, Não Case fez um filme vazio que amontoava alguma força pra si mesmo por meio do estilo. Ele viu os filmes antigos do Scorsese, e não entendeu o que tornava eles tão profundos e tão dilacerantes, mas entendeu pelo menos o prazer que eles proporcionavam com as cores barrocas, a fotografia granulada, a ênfase constante no ódio e hostilidade permeando a Nova York dos anos 70. Ele soube fazer um filme que levou essas características ao estado do absurdo, da caricatura, transformando o estilo scorseseano em manifestação de um maelstrom emocional maior por fora do que por dentro — uma solidão urbana geral e genérica que se fazia sentir como tragédia operística. Beleza. Ponto pra ele. Mas ele não entendeu que não entendeu. Ele julgou, na verdade, que tinha de fato tecido um estudo de personagem denso e complexo e socialmente perceptivo. Ele acreditou que Coringa, um filme sobre um homem com doença mental não-especificada sendo surrado e humilhado até sair matando num surto sem qualquer conexão com qualquer literatura psiquiátrica, tinha algo a dizer sobre neurodivergência e falta de cuidado. E ele achou que os fãs do filme — que entenderam com exatidão o apelo emocore e a fungibilidade “APLICAR À SUA PRÓPRIA OPRESSÃO, REAL OU IMAGINADA” da coisa toda — não entenderam nada.

Ele achou, em outras palavras, que tivesse feito um filme sério. Um filme de homem. Ou achou, ou passou retroativamente a precisar achar, pra não ter que encarar a realidade de ter feito o equivalente heterossexual de uma produção do Ryan Murphy. E, diante da recepção completamente não-séria a Coringa, diante das legiões de pessoas tratando o filme como o filtro de Instagram que ele era, a resposta do diretor de Se Beber, Não Case foi fazer um filme mais sério ainda, mas que usasse a não-seriedade (a artificialidade (a feminilidade)) como extremo oposto de uma dicotomia.
A dicotomia em questão em Coringa: Delírio a Dois é que a sociedade — proxy para o público — entendeu Arthur Fleck como um herói revolucionário, como um mártir, como um fodão, como o CORINGA, quando na verdade ele era apenas um homem neurodivergente em sofrimento profundo que precisava de ajuda. O problema: não só esse é um conceito hipócrita — foi você quem glamourizou o Coringa, Todd, não eu — como também é um conceito impossível de fazer funcionar a partir do material-base que o filme tem em mãos. Arthur Fleck não é “apenas um homem neurodivergente”; Arthur Fleck nem é um personagem pra começo de conversa.
Da mesma forma que Coringa era narrativamente catastrófico desde o princípio por tentar suscitar empatia e tensão empilhando crueldades aleatórias em cima de um avatar impessoal de coitadismo (a mesma tática dramatúrgica de Blogueirinha, a Feia, porém se levando a sério), Coringa: Delírio a Dois é narrativamente catastrófico por agora fingir que essa procissão de crueldades tinha alguma profundidade. As cenas de tribunal, com os atores (Catherine Keener, meu amor, sai daí) recapitulando a trama do primeiro filme e tentando com todas as forças fazer parecer que estão relatando sobriamente os eventos vividos por uma pessoa real, são embaraçosas. Ninguém viu ou se interessou por Coringa pelo desenvolvimento psicológico de Arthur Fleck, que era raso e comicamente mal-escrito, mas agora Coringa: Delírio a Dois quer que você saiba que era no desenvolvimento psicológico do Arthur — e não no carisma mórbido do Coringa — que você devia ter prestado atenção. Como você ousa ter se esquecido de todos os TRAUMAS de INFÂNCIA de Arthur Fleck????
Claro, tem os incels e tal, pra quem essa mensagem subversiva supostamente seria endereçada. Mas o que, na prática, Coringa: Delírio a Dois tem a dizer pros incels na plateia? A mesma coisa do primeiro filme, que, incidentalmente, é a mesma coisa que ambos os filmes têm a dizer para pessoas realmente à margem da sociedade que se identificaram com o sofrimento do Arthur: nada. Coringa é lembrado como um filme incel, mas mesmo essa alcunha suporia intencionalidade política demais por parte do diretor de Se Beber, Não Case. Arthur Fleck é, de novo, um avatar impessoal de coitadismo. A “resposta” dada por Coringa: Delírio a Dois ao sucesso do primeiro filme precisaria, pra ser incisiva de verdade, dar corpo claro e definido ao movimento de seguidores do Coringa, mas o filme não faz isso. A Galoucuringa é, também ela, impessoal, sem voz, sem ideias, sem crenças, sem características particulares, nem de esquerda nem de direita; o filme não sabe o que dizer sobre o próprio público, muito menos o que dizer para o próprio público.

O que nos traz ao gênero. Se Coringa era vago no messaging sociológico, era também extremamente claro na mobilização específica do imaginário da masculinidade, do Chad, do homem impávido e imbatível que resolve seus problemas com uma arma na mão e um cigarro na outra. (Essa é uma das muitas contradições de um mundo permeado pelo gênero: A masculinidade é conteudística, é o “de verdade”, mas precisa constantemente ser reiterada por performances e códigos ornamentais, justamente porque a ausência completa de ornamento ou artifício revelaria que a substância crua do mundo não tem gênero nenhum.) Agora, como é do seu feitio, o diretor de Se Beber, Não Case se faz de sonso. Agora, ele age como se o aspecto preocupante do primeiro filme fosse o verniz de confusão de gênero — o terno colorido, a maquiagem, a dança na escadaria, o tom camp e histriônico — e não a fantasia de poder chauvinista em si sobre a qual o verniz foi aplicado. Pior: ele age como se a própria fantasia de poder fosse uma forma de confusão de gênero, e não de chauvinismo.
Não é fortuita a decisão de representar toda a massa de fãs do Coringa por meio de uma única mulher fútil e maluca que, mesmo com pouco tempo de tela, consegue cumprir quase todos os requisitos de uma succubus clássica. Se você olhar bem pro andamento de Coringa: Delírio a Dois, toda a recaída do Arthur na persona do Coringa é puxada pela Lee (não Harley, pois este é um filme sério); todas as fugas dele pra fantasia e pro delírio são incentivadas pela Lee; todos os discursos tortos sobre o que o Coringa representa saem da boca da Lee. É hilário pra mim que tenha gente interpretando Delírio a Dois como uma “crítica dura aos incels”, quando o único fiapo de conclusão temática que se pode tirar do filme é que o Arthur foi sacaneado por uma mulher interesseira que só queria ele pelo poder e não tava nem aí pra quem ele era de verdade.
E veja bem, eu não acho que o Todd Phillips tenha feito de propósito. Eu não acho que ele pretendia conscientemente promover ideias machistas nesses filmes; em alguns momentos de Delírio a Dois, parece até que ele se ressente dessa interpretação e quer se redimir, como no momento em que o Arthur beija um rapaz na prisão sem titubear. (Já o Joaquin Phoenix, pelo visto, ficou tão traumatizado pela experiência que não quis mais fazer o filme gay do Todd Haynes que já tinha assinado contrato pra fazer.) Mas Todd Phillips, assim como eu e você, não está imune ao império do gênero, e a visão que ele tem de musicais é mais ou menos exatamente a visão que seria de se esperar de um diretor com, novamente, essa filmografia:
Coringa: Delírio a Dois é inconfundivelmente um musical do diretor de Se Beber, Não Case — ou seja, um musical que odeia musicais. Na dicotomia do filme, os números musicais são a expressão de tudo de “errado” na resposta do público ao primeiro filme: a superficialidade, o culto à anarquia, a desconexão com a realidade, a supervalorização da forma e da cosmética e do estilo em detrimento do “conteúdo” da vida real do Arthur. É nos números musicais que o Arthur se transforma em Coringa e esbanja todas as atrocidades e palhaçadas que os fãs “erroneamente” amaram; é nos números musicais que ele encontra o próprio poder e a própria empáfia. Perto do final, Todd Phillips deixa a própria opinião sobre musicais explícita, numa cena em que a Lee começa a cantar e o Arthur implora pra ela parar, sair do mundo da fantasia e conversar com ele normalmente. Se você acha idiotice quando personagens num filme começam a cantar do nada, não se preocupe: Coringa: Delírio a Dois também acha.
E é uma pena, porque, por mais que esse conceito — musicais e cantoria e dança e cores fortes como condutos pra tudo de ruim no mundo — seja patético epistemologicamente, poderia pelo menos ter permitido um filme divertido, caso o Todd Phillips investisse alguma energia criativa nos números musicais. Mas ele não tem o menor interesse em fazer isso. Como musical, Coringa: Delírio a Dois é o pior musical que eu já vi na minha vida; nenhum número expressa nada, tenta nada, faz nada de fato com a forma do canto e da dança e da montagem ritmada. As escolhas de música são genéricas, standards óbvios e sem relação construtiva com as cenas, típicos do repertório inofensivo de um homem hétero com gosto musical “bom”. É como se cada número pretendesse apenas significar a própria existência: olha só, eles estão cantando, pois estão fugindo da realidade, entendeu?, beleza, agora vamos esperar a música acabar. É um musical de um homem que se considera acima do processo de impressionar o público por meio dos dispositivos do gênero. Na cabeça do Todd Phillips, Delírio a Dois é, na verdade, um anti-musical, um uso do gênero pra chamar atenção pra aquilo que as convenções do gênero supostamente ocultam.
O problema é que tudo é gênero, também na acepção cinematográfica da palavra “gênero”. O primeiro Coringa não era um filme sério, sem gênero, cuja essência séria e agênero os aparatos musicais de Delírio a Dois enfatizam ofuscando; era um filme de ação. Se Todd Phillips agora se acha bom demais pra se refastelar na euforia maligna dos delírios musicais do Arthur, ele com certeza não teve pudor em se refastelar na euforia dos delírios de filme de ação do primeiro Coringa.
Mas dessa vez, ele decide que chega de euforia maligna, chega de prazer mórbido — como se o prazer mórbido possível desse filme fosse o mesmo do primeiro. Coringa: Delírio a Dois não é uma resposta a Coringa, porque não é uma resposta ao gozo estilístico de Coringa, e sim uma resposta a um outro gozo estilístico do qual Coringa passava longe. A “crítica ao público” feita pelo filme é descontínua, um enunciado sem nexo: “Você gostava dos tiros e da porradaria do Coringa? Tolo! As fantasias musicais do Coringa eram só uma ilusão!” Que fantasias musicais, meu filho? Você inventou isso agora, não era disso que os incels gostavam. Todd Phillips como nutricionista: Você gosta de bolo de chocolate? Sinto muito, torta de limão faz mal pra saúde.
É uma maneira extremamente conveniente de o filme bancar sobriedade crítica em relação aos próprios fãs sem de fato confrontar aquilo que haveria pra ser confrontado cinematograficamente no primeiro Coringa. Todd Phillips também se acha acima da forma e do estilo, ao que parece — ele não seria o primeiro cineasta homem hétero a pensar assim — mas, pro azar dele, adivinha: tudo é forma, e tudo é estilo. Sabe quem entende isso? Martin Scorsese. Pra além de ser menos inteligente, menos talentoso, menos criativo, menos erudito, menos progressista, menos curioso, menos sensível, menos interessante (…) do que o Scorsese, a razão pela qual Todd Phillips não consegue fazer um filme tão bom quanto os filmes que ele imitou no primeiro Coringa é que o Scorsese sempre pensa profundamente na questão do prazer cinematográfico, e na forma como ele é alocado.
Qualquer diretor conseguiria fazer um filme contando uma história sobre como a masculinidade é horrível e os EUA são uma mentira — um filme que contivesse essa substância, por assim dizer. Mas o Scorsese entende que a sensualidade do estilo é essencial pra realmente engajar com esses temas. Os filmes dele — que são generalizados como ápice do cinema hipermasculino em Hollywood, mas têm como coautora central e onipresente uma mulher, a montadora Thelma Schoonmaker — são armadilhas sedutoras que te cativam, através do estilo, pra dentro das ideologias insanas que eles criticam, e depois usam esse mesmo estilo pra te fazer sentir a ojeriza e o desgaste espiritual que o próprio Scorsese (e a própria Schoonmaker) sentem por aqueles prazeres. Taxi Driver é um filme sobre como a cidade grande parece um antro de podridão quando você é um machinho bitolado que só pensa em si mesmo; Coringa é um filme sobre como a cidade grande é um antro de podridão, ponto.
E agora, em vez de questionar esse ódio enorme e violento pela cidade grande com o qual uma parte do público se identificou, Todd Phillips questiona… quem achou a persona do Coringa carismática. Ela é carismática, porra, não era esse o ponto? O Oscar não foi por isso? Não era esse o único aspecto que diferenciava o primeiro filme de um drama sensacionalista malfeito sobre doença mental pra passar no SBT?
Se fosse pra ser essa a “subversão”, que pelo menos o filme tivesse a hombridade de reconhecer que a escrotice do Coringa residia na masculinidade sociopática, e não na excentricidade andrógina. Os poucos momentos em que Coringa: Delírio a Dois é minimamente envolvente são os momentos em que o Joaquin Phoenix entra em modo Coringa, e o filme observa hipnotizado ele fazer o seu show caricato fundindo ginga de canalha e afetação de theater kid. Mas o Phillips não sabe pra onde canalizar a energia gerada por essas cenas e logo abaixa o volume, voltando pro esquema monótono do drama-sério-interrompido-pelos-delírios. Ele não tem coragem de desmanchar o carisma fascista do machão bruto e transformar o prazer em fardo (como o Robert De Niro e o Scorsese fizeram em Taxi Driver, e como o próprio Joaquin Phoenix e a Lynne Ramsay fizeram em Você Nunca Esteve Realmente Aqui), e tampouco tem coragem de fazer a outra opção, que seria mergulhar de cabeça no universo de expressão musical e emocional irrestrita representado pela Lee, e ir descobrindo o que o Coringa pode se tornar num âmbito em que as normas da masculinidade não têm jurisdição. A única subversão que poderia tornar Coringa: Delírio a Dois interessante, a subversão de gênero — gênero em sentido bíblico, masculin-féminin —, é justamente aquela da qual Todd Phillips realmente tem medo, por mais que jogue um beijinho gay avulso pra disfarçar.
É por isso que não me parece certo dizer, de forma implicitamente elogiosa à ousadia envolvida, que Coringa: Delírio a Dois “não é pros fãs do primeiro filme”. A questão não é essa. Coringa: Delírio a Dois simplesmente não é pra ninguém — ninguém a não ser eventuais espectadores que amavam profundamente a história singela de Arthur Fleck debaixo dos dispositivos de gênero do primeiro filme, e queriam que ela tivesse precedência sobre a coisa toda do Coringa. Como estamos vendo agora, o contingente em questão é baixíssimo, o que não é de se surpreender, já que a história singela de Arthur Fleck era uma história pífia.
Coringa: Delírio a Dois é uma tragédia de húbris destruidora, de um artista impedido pelos ditames da masculinidade — a masculinidade aprumada, altiva, que nega a si mesma e aos seus ornamentos — de reconhecer o apelo da própria obra. Todd Phillips achou que Coringa tivesse “substância”, e que essa substância precisasse ser explicada pra quem não entendeu. Mas, como se diz em inglês, there’s no “there” there. Não há nada ali. O primeiro Coringa é cinema trash, que por um bizarro surto coletivo foi confundido por alguns anos com drama “sério” e de “prestígio”. Agora esse surto acabou. Um diretor melhor, ou pelo menos não tão patologicamente hétero, perceberia e se divertiria com o surto; o diretor de Se Beber, Não Case surtou junto.
(E repare que eu nem falei nada sobre a atuação da Lady Gaga, porque simplesmente não tem o que falar. Ela atua competentemente no papel de uma personagem nula, os números musicais não dão material pra ela fazer quase nada, a voz sussurrada e o olhar 46 e as sobrancelhas dela continuam sendo poderosíssimos mas o filme é indiferente a eles. É um casting simbólico; Todd Phillips escolheu Lady Gaga não pelo que ela tem a oferecer como atriz, mas por ser Lady Gaga, um ícone daquilo que ele vê como a superficialidade e artificialidade e loucura “fingida” da cultura pop. O filme faz mais sentido se você imaginar que a personagem é a própria Lady Gaga pelos olhos do Todd Phillips. O que traz a questão de por que ela aceitou esse papel desmoralizante, e continua aceitando papéis de diretores que não entendem o valor dela como artista; eu pensei em reservar metade desse texto pra uma investigação do que fez a Gaga se afastar dos gays e abraçar justamente a heteronormatividade e a feminilidade burocráticas que ela surgiu achincalhando, mas achei melhor deixar pra lá, porque ia virar um texto sobre música e cultura de celebridade em vez de cinema. Só o que eu peço, Stefani, é que você entenda de uma vez por todas com esse filme que eles não te merecem, e considere trabalhar com cineastas gays e mulheres daqui por diante. Só trabalhar com cineastas não-machistas, sinceramente, já seria um bom começo. Volta pra gente, Stefani. A gente ainda te ama.)
Faço coro ao seu apelo à Gaga e admito, com um pouco de embaraço, que quase fiquei com vontade de ver o filme, agora, para ver se seria assim tão horrível (estou certa de que sim). Ótimo texto! Obrigada por ele e bom domingo! :D