esse texto contém spoilers de A Substância (2024).
Leitor, eu tenho péssimas notícias: você tem um corpo. Calma, não se desespere, é um baque mesmo. Respire fundo. Leve o tempo que precisar pra processar a informação. Processou? Perfeito. Agora vou te dar outra notícia mais aterradora ainda. Preparado? É o seguinte: você tem sentidos. Sim, sim, que horror. Talvez tenha me afobado um pouco, peço perdão. Você mal tinha processado o fato de ter um corpo. Mas não tem jeito, as coisas são o que são, a gente tem que lidar. Vamo lá, só mais uma bomba, se segura porque essa é a pior de todas: você tem uma mente. Eu sei. Pode gritar se quiser.
Alguém lendo isso decerto não vai entrar na pira desse primeiro parágrafo porque não vai embarcar na ideia de existirem gradações existenciais piores além do Ter Um Corpo. O dogma normalmente é esse, né? Especialmente em um texto sobre body horror. Nossas mentes são reféns dos nossos corpos, estamos todos presos em sacos de carne frágeis e putrescentes que podem se esfacelar a qualquer momento ao sabor das intempéries do mundo, etc. Acontece que mentiram pra você, e eu também menti, na primeira linha desse texto. Ter um corpo não é um fardo; ter um corpo é a melhor parte. Se não a melhor, no mínimo a menos pior. É maravilhoso estar preso em um saco de carne frágil e putrescente. Logo menos explico o porquê, mas, em todo caso, a questão na verdade nem é se ter corpo é melhor ou pior que ter mente. O verdadeiro problema, o verdadeiro horror, veja bem, é que tudo em você — o corpo, a mente, os sentidos — desempenha ao mesmo tempo a mesma ação terrível.
Você deseja.
Como se não bastasse tudo. Puta que pariu.
A protagonista de A Substância, Elisabeth Sparkle, também deseja. Mas, assim como todos nós em um momento ou outro, ela se esqueceu disso. Ela não se esqueceu do que deseja, perceba — ela esqueceu que tem a capacidade de desejar. Já a Coralie Fargeat lembra muito bem. Da mesma forma que lembra que nós, o público, também desejamos e desejaremos muita coisa. Da mesma forma que lembra que nós temos um corpo, e sentidos — coisas que seria de se imaginar que todo diretor lembrasse, and yet.
A primeira coisa que salta à percepção em A Substância é o estilo da Fargeat. Apesar dos espaços de cena amplos, cheios de linhas e jogos geométricos akermanianos e kubrickianos, o cinema dela não tem qualquer cautela ou pretensão à elegância. Esse é o segundo longa da Fargeat, que começou a dirigir longas com 40 anos; a câmera e a montagem dela têm a objetividade de quem não tem tempo pra gastar com besteira. Ela sabe o que precisa mostrar e o que precisa causar e quais informações precisa passar, e você também sabe, e ela sabe que você sabe, então vamos logo com isso. Tem uma potência enorme na simplicidade afetiva das escolhas dela, no desapego de “se provar” ou demonstrar cálculo e ponderação. Ela quer te deixar inquieto? Baques surdos na sonoplastia. Ela quer fazer uma imagem se embrenhar na mente? Corte seco na hora H. Ela quer provocar desgosto com o rosto de um ator? Grande-angular na fuça. Ela quer criar um clima de esterilidade e alienação? Banheiro todo em azulejo branco. Seria impreciso descrever a direção de A Substância como “pouco sutil”, porque o negócio é mais que o filme te transporta pra um mundo em que o conceito de sutileza nunca teve importância. São tantas ênfases extremas, em sucessão tão rápida, mais rápida que a marcha do cérebro, que não dá tempo de intelectualizar e chamar de “óbvio”. É libertador. Funciona.
Eu ficaria tentado a escrever que a Fargeat “dirige pro corpo”, mas, por mais conveniente que essa ideia fosse ser pra minha tese, não seria de todo verdade. Primeiro, porque várias das maiores risadas que eu dei no filme vieram da inteligência sequíssima do humor, de momentos como a mulher mais sexy do mundo fazer um puta suspense pra se apresentar como… Sue. Sue — um nome que parece um espirro que não deu pra abafar e saiu mirrado. Um nome de gerente do Walmart. Me lembrou a minha cena favorita de Monty Python em Busca do Cálice Sagrado.
Segundo, porque, sim, esse é um filme com muito em mente, e que se dirige também à minha e sua mente com muita inteligência, ainda que não com o tipo de inteligência que se associa ao arquétipo de “filme inteligente” (calafrios de pavor). Teve — está tendo — quem acuse A Substância de ser uma sátira rasa. Por “sátira rasa”, entenda-se uma sátira em que o objeto satirizado se faz decifrar rápido, e em que a Ideia Por Trás é uma só, aquela ali mesmo, sem insights alegóricos do tipo “uau, isso diz muito sobre tal problema”. Pra ficar um pouquinho mais em Monty Python, não é um A Vida de Brian em que cada cena te faz rir lembrando de algum absurdo sociopolítico. O diagrama é de fato bem simples: Uma estrela da indústria da imagem entra em desespero pra ser jovem novamente, gera uma versão jovem sua, e então vê o mundo recompensar a versão enquanto despreza a matriz, pois a sociedade odeia que mulheres saiam dos avatares consumíveis da mídia e sejam humanas. Os “pontos sendo feitos”, em si, são poucos e claros. Mas os pontos, pra gastar um pouquinho mais o anglicismo, não são o ponto.
Considere a cena em que a Sue é gerada, e a Fargeat põe a gente pra ver pelos olhos dela. O olhar da câmera nesse plano é, literalmente falando, um olhar feminino — um female gaze. É o olhar da Sue sobre si mesma. Ela se contempla no espelho, trêmula, curiosa, envolvida no momento; olha pro seu novo rosto sem rugas, seus novos seios, sua nova bunda, como se confirmando que realmente aquilo aconteceu — que ela realmente acordou em um corpo jovem e escultural. Confirmado o corpo, ela olha o próprio olho no espelho, olha bem pra ver se vê direito, e confirma os sentidos.
E agora veja só como realmente ter uma mente é que é o problema: o corpo é novo, os sentidos são novos, mas, assim que a Sue olha o próprio olho, a câmera dardeja pra trás e sai da subjetiva. Agora, a gente vê a Sue de longe, de corpo inteiro, e ela imediatamente começa a fazer poses sensuais lentas. A câmera começa a passear em torno do corpo dela com a gula despersonalizante de um diretor masculino tarado, PEITOS, CINTURA, TESTA DA POMBA. Esse ainda é um olhar subjetivo: é o olhar que a Sue agora imagina sendo lançado sobre ela, finalmente, finalmente. A mente ainda é a mesma. O “ponto” é simples: o patriarcado e a indústria da imagem fazem a objetificação parecer uma conquista. Mas o ponto não é o ponto. A câmera, além de comunicar “pontos”, é uma agente de desejo, e, assim que a subjetividade da Sue se firma, a câmera foge da perspectiva dela. O que a Sue deseja? Vai saber. No instante em que ela começa a existir, o instinto imediato dela é se prontificar a ser desejada.
E é estimulante — A Substância como um todo é estimulante — porque a gente também deseja. Eu gosto de pensar que, se me dessem a oportunidade, eu não geraria uma versão mais gostosa de mim mesmo pra dividir a vida comigo. Mas, se eu gerasse, eu tenho certeza absoluta de que minha primeira reação ao me ver no espelho seria me imaginar sendo desejado. Me devorar com os olhos como agora me devorariam. Me sentir um banquete. É uma fantasia plenamente inteligível. A Substância não é uma sátira rasa; é uma fantasia mórbida. O terror não é que tem gente que faria isso; o terror é que você faria. Não faria?
Pensa bem: não faria?
Não se imaginaria num corpo perfeito, corrigido, sem atrito com o espelho? Não ficaria com curiosidade? Não se idealizaria libertado da vergonha e solto pra voar no mundo? Não seria tranquilizado pela informação de que tá tudo vindo de você? Não diria pra si mesmo que basta manter o equilíbrio, que qualquer coisa é só parar? Não entraria em pânico e burlaria as regras só por umas horinhas pra não ter que dispensar a pessoa antes inalcançável te esperando pra transar? Não começaria a se entediar da vida no corpo de sempre? Não se ressentiria do corpo de sempre? Não odiaria o corpo de sempre?
E nesse empuxo inexorável, você não se esqueceria, como já se esqueceu antes, de ser alguém e querer coisas e fazer coisas, e não se perderia, como já se perdeu antes, no vício de ser querido? A qualquer, qualquer, qualquer custo?
É uma fantasia mórbida, e uma fantasia frustrantemente honesta, por não ser prazerosa. Viciante, sim — mas não prazerosa. A Sue não faz nada de interessante com a própria existência. A gente vê ela sempre em relances breves de Sucesso idealizado, sem personalidade, sem corporeidade; nem o sexo, o usufruto implicitamente central do corpo novo, a gente vê. O que ela faz com o tempo dela fora do Pump It Up with Sue e dos ensaios de foto não importa. Não é que não importe pro filme: não importa pra ela. Ela não deseja nada, nada além de ser desejada, mais e mais e mais e mais e mais.
E a Elisabeth? A Elisabeth é a Sue — a Sue é a ferramenta pela qual a Elisabeth pode realizar tudo o que realmente quer. E ela não quer. Num geral. Viver soma; querer soma; a Elisabeth, como tantas pessoas, foi reduzida a esperar sentada pelo momento de ser glorificada pelo olhar do outro. A bebedeira e o binge eating funcionam pra ela porque não são vontades reais, estruturantes, mobilizantes. São só impulsos. O que a Sue não entende é que as bagunças deixadas pra trás pela sua versão velha não são sinais de uma existência ridícula e grotesca e vergonhosa; são as carcaças de uma não-existência. Da mesma não-existência que ela própria vive, disfarçada pela validação ininterrupta.
É extremamente fácil se acostumar a não existir. Anos atrás, eu tive um relacionamento que me fez me odiar. Nessa época da minha vida, tudo que eu fazia de manhã até a noite era pensando em fazer meu namorado me querer de novo. Eu abri mão de hobbies e interesses e deixei relações descarrilarem por não servirem ao propósito de talvez agradar ele. Eu desprezava tudo que eu era por não ser suficiente pra fazer ele me olhar. Se eu tivesse tido a oportunidade de me degradar pra nutrir uma versão mais atraente minha, eu teria me entregado sem hesitação. A rejeição é um sol que queima no mormaço; não existe qualquer incentivo pra se empoderar e voltar à própria vida quando viver a própria vida é uma pena diária imposta pela indiferença de outrem.
E, bom, eu nunca fui uma atriz com estrela na Calçada da Fama, mas imagino que viver expressamente de imagem por 30 anos não facilite muito. Viver de imagem é um círculo vicioso: quanto mais a gente dá pra imagem, mais desaprende a viver sem ser visto. Chega um ponto em que não ser visto parece igual a estar morto. E se aí vem a rejeição, meu amor, se isolar vira um suicídio que tem que ser reiterado todo dia. É devastadora a maneira como a linguagem corporal da Demi Moore muda entre a primeira cena e o resto do filme, toda a confiança e doçura e gingado evaporando como se nunca tivessem estado ali, a ponto de todas as cenas seguintes dela em público terem uma tensão que só se dissipa quando ela se enfurna em casa de novo. É devastador que essa mudança aconteça num box de banheiro público, oculta do espectador. Mas teria necessariamente que ser desse jeito; é a morte de uma imagem, e imagens morrem sem ser vistas.
If I gave up on being pretty, I wouldn't know how to be alive
I should move to a brand new city and teach myself how to die
Mitski, “Brand New City”
Eu, da minha parte, vivi tantas vezes situações parecidas com a da Elisabeth pegando asco da própria cara no espelho e desistindo de sair de casa, tanto durante quanto depois do relacionamento supracitado, que até hoje tenho medo de me encarar por tempo demais quando tô me arrumando e acabar com a cabeça entre os braços tendo uma crise de choro. Na mesma toada, na cena em que a Sue segura a Elisabeth pelo pescoço na frente do espelho, eu reconheci imediatamente a gênese do sorrisinho da Elisabeth.
Eu já tive momentos em que desejei que o meu corpo fosse destruído — em que, se alguém mais bonito que eu batesse com minha cara num vidro até me desfigurar completamente, alguma coisa em mim sentiria alívio e catarse.
Mas eu nunca tinha realmente admitido isso pra mim mesmo até ver A Substância. Do auto-ódio eu já sabia; eu não sabia o quanto eu tinha chegado a desejar a violência.
E olha só que coisa: tem quem diga que A Substância é um filme de mau gosto. Que é exagerado, que é deselegante, que é apelativo. O clímax do filme, com um monstrengo deformado literalmente esguichando sangue em centenas de pessoas, quase convida ao escárnio; já vi gente comparando com filme de ação da TNT, chamando de “final idiota” e “final sem sentido” e similares. Pois muito que bem. Eu nunca vi um final que fizesse tanto sentido quanto o final de A Substância. O mundo, nas formas mais espúrias em que ele se me tem apresentado, é exatamente aquele banho de sangue. O Brasil, nesse exato momento, está envolto em fumaça tóxica de incêndio florestal pra uma classe de plutocratas poder construir mansão com spot de luz branca e fazer harmonização facial treinada em cadáveres fresh frozen. Exigir que filmes e obras de arte tenham sutileza e bom gosto sempre foi um preciosismo burguês meio cafona; em 2024, é negação da realidade. O mundo está acabando ao vivo. A arte precisa enlouquecer. Não enlouquecer seria loucura.
Não sou só eu que acho. A Substância falou muito comigo, mas não só comigo; A Substância é um filme pop. Minha sessão foi às 21h30 de uma terça-feira, em um cinema de rua, e estava quase completamente lotada. À minha volta, todo mundo reagia a todas as cenas com aquele misto de frisson e pânico que jaz nas fantasias mais íntimas de quem entra numa sala de cinema. Todo mundo se dobrava de nojo, grunhia “nãããão”s de expectativa, explodia em gargalhadas quando a Fargeat fazia algo completamente absurdo tipo um match cut de bundas. Todo mundo desejava mais e mais do filme. Enquanto eu assistia, me retorcendo e me inclinando pra frente e pra trás e cobrindo e descobrindo a boca com as mãos, eu me senti nos braços de um clássico nascente, abençoado de poder deixar o filme fluir pelo meu corpo.
É bom demais ter um corpo, apesar de tudo. Muita gente fala da cultura da imagem do Instagram e adjacências como uma cultura de “culto ao corpo”, mas não é isso. Muita gente reclama que o mundo de hoje é materialista, mas não é isso. O mundo tinha que ser mais materialista. O mundo tinha que cultuar mais o corpo, o prazer, o nó do choro, a dor da risada, a barriga cheia, o ar puro. O mundo tinha que se importar se uma floresta queima. O mundo tinha que se indignar se o nível do mar sobe pra gerar pornô IA de celebridades. O culto à imagem não é um culto ao corpo. A imagem não é o corpo.
Body is pure.
Everything loathsome is the mind,
which God screws into the body with a lascivious thrust.
Anne Carson, “Men in the Off Hours”
A imagem, na verdade, é uma negação do corpo. O clichê filosófico de que fotografia é uma forma de assassinato infelizmente é verdadeiro, e todo mundo está matando tudo constantemente. O mundo está acabando, mas, quase tão grave quanto isso, o mundo está deixando de ter importância, e vai acabar sem ninguém dar pela falta. As imagens não vão poder viver por nós quando a gente tiver destruído tudo. Eu, pra minha sorte, entendi isso antes de me matar; os donos do mundo não vão. O nosso futuro vai ser parecido com a breve vida da Monstro Elisasue — que, espetando serenamente brincos dos dois lados do rosto e rastejando rumo ao mundo, mostra mais aprumo e presença de espírito do que qualquer outra iteração da Elisabeth vista até então. Lá no fim, quando já tá tudo destroçado, só sobra a vontade de viver, que é tudo o que nós temos.
Nem Elisabeth nem Sue percebem isso enquanto é tempo. Elas — ela — não quer nada em momento nenhum. E não porque não seja possível ela querer, mas porque querer é muito difícil. Querer exige trabalho, é arriscado, mais frustra do que compensa, mais cansa do que conforta. A parte mais difícil de lidar com o meu término traumático não foi superar o meu ex, propriamente, nem tampouco parar de sentir nojo da minha própria cara, e sim me convencer de que tinha algum sentido em escolher viver. Por muito tempo eu precisei me agarrar a qualquer coisa que eu quisesse um pouquinho, e tentar querer até querer sem precisar tentar. Eu só parei de me odiar quando comecei a gostar do que eu estava fazendo com os meus dias.
Mas eu não esqueço do quanto isso — gostar dos próprios dias — pode ser impensável, incogitável, em um certo estado mental. A Sue se empurra até o próprio limite biológico pra fazer o show de ano novo por… qual motivo, exatamente? O que ela espera que venha depois do show? O que ela ganha gastando os últimos fiapos de força vital nisso? Mesmo a Monstro Elisasue, decidida a viver nos últimos momentos, não exatamente segue vontades resgatadas do seu âmago. Ela segue o cronograma do show, ainda, como se limitada à imagem, ainda.
O único momento do filme inteiro em que a gente vê alguma versão da Elisabeth de fato honrar uma vontade é quando a Sue constrói a sala secreta no banheiro. Imagine você — perceber-se num corpo com funcionalidades ideais, poder ir viver qualquer coisa no mundo, e passar uma semana quebrando parede e instalando bucha sem qualquer necessidade. Só uma vontade avassaladora poderia estar guiando a Sue naquele momento. Foi a cena em que eu mais ri no filme, porque eu percebi que é absolutamente algo que eu faria: querer tanto fazer algo a ponto de jogar fora uma semana.

E perceba: nada disso é alegórico ou semiótico. Pouca coisa nesse filme simboliza. Os homens patéticos não simbolizam o ridículo do patriarcado nem nada assim; eles só são homens muito patéticos. (O Dennis Quaid, infelizmente, merece o Oscar de Melhor Ator Coadjuvante.) Um filme grotesco não precisa ser uma alegoria se o mundo em si é grotesco. Homens assim são mais próximos da realidade do que os homens héteros da maioria dos filmes. Coralie Fargeat não tem tempo pra artifícios e suavizações. Tudo nos filmes dela é material, é aqui e agora. Vingança se chama Vingança mas não é sobre vingança: Tudo que a Jen faz é pra sobreviver, sem nenhum espaço pra conceptualização afetiva. E A Substância não é sobre substância. É o contrário: um filme sobre a experiência material de um mundo sem substância. O que é a matéria sem substância? O que viria a ser isso? Quem respondeu “a imagem” acertou. Olha o verso fechando!
E as palmeiras? Em vários momentos do filme, a Fargeat coloca inserts enigmáticos de palmeiras contra o céu limpo de Los Angeles, normalmente vistas de baixo, com as copas isoladas no plano. O que elas significam? Pra que elas estão lá? Pessoalmente, elas me comoveram profundamente só por serem palmeiras. Altas, enormes, com troncos magrelos e folhas só láááá em cima farfalhando ao vento. Talvez — vai saber — a Fargeat tenha pensado nas folhas das palmeiras pra simbolizarem o desejo inalcançável da Elisabeth de ser uma estrela sem ser usada, sem ser tocada, linda e majestosa no meio do concreto, invulnerável à marcha desse mundo que devora florestas e corpos. Eu prefiro pensar que a beleza das palmeiras está em não simbolizarem nada. Elas podem só ser bonitas. Podem só ser olhadas. Qualquer um pode olhar pra elas, se quiser, e desfrutar da vista. Nos últimos segundos de existência, não dá mais pra Elisabeth tomar nenhuma ação, mas dá pra ela olhar pras palmeiras, e fazendo isso ela está viva.
A última tragédia de A Substância é que esse momento — o momento mais comovente do filme — seja interrompido por um devaneio de aplausos e aclamação. Até o último instante, a Elisabeth vive pela imagem. E a imagem, no fim, é a gente no mesmo grau em que uma estrela de marmorite numa calçada é a gente: nenhum.
É bom demais ter um corpo, apesar de tudo.
Texto maravilhoso. Indicarei como medida emergencial a quem assistir o filme.
perfeito